Preservação de cemitérios garante estudo sobre identidade local

Cemitério que antecede a cidade de Telêmaco Borba é preservado há apenas quatro anos, após oito décadas de existência

Com o início do mês mais assustador do ano, muitas referências assustadoras surgem no imaginário social. O Halloween lembra bruxas, fantasmas, filmes de terror, abóboras, aranhas, esqueletos e ambientes mal assombrados. Entre eles, não se pode esquecer dos cemitérios. Mas, você sabia que a ligação entre os cemitérios e o 31 de outubro não é apenas assustadora? O Dia das Bruxas é uma festividade, enraizada no paganismo europeu, que representa homenagem aos antepassados. Os cemitérios, assim como essa celebração, também manifestam identidade a partir da história que são capazes de preservar, o que faz o tombamento de alguns deles essencial para a sociedade. É o caso do Cemitério Harmonia, em município paranaense, tombado em 2019.

Há cerca de 83 anos atrás, chegava em, o que hoje conhecemos como a cidade paranaense Telêmaco Borba, a empresa Klabin, produtora e exportadora de papéis. Trabalhadores se instalaram no local e uma comunidade foi formada. Assim, como o ciclo da vida está intrínseco a qualquer comunidade, surge o Cemitério Harmonia. Os sepultamentos eram especialmente de trabalhadores da Klabin. Assim, após 50 anos de existência, o cemitério encerra as atividades na década de 1990, quando o crescimento da cidade de Telêmaco Borba foi elevado à categoria de município em 1964. 

Membros da APPAC que pesquisaram o cemitério, o que levou ao tombamento, relatam que, diante do abandono, por volta dos anos 2000 o cemitério culminou em mau uso. Jovens costumavam ocupar o local com festas, causando tumulto ao pularem o muro. O cenário levou a Klabin a contatar familiares das pessoas sepultadas em Harmonia, propondo o desmonte do cemitério. A reação da comunidade foi contra a proposta da empresa: a população moveu uma ação no Ministério Público para que o cemitério fosse tombado. “O Ministério recebeu essa ação e enviou para a Secretaria de Cultura do Paraná para questionar se o cemitério poderia ser tombado. Se era importante do ponto de vista patrimonial”, relata o geógrafo Leonel Brizolla Monastirsky, que conduziu a pesquisa sobre o cemitério. A Secretaria, então, solicita ao laboratório da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), coordenado por Leonel, um estudo sobre o cemitério. 

As entrevistas eram realizadas, muitas vezes, no segundo dia de novembro, Dia de Finados, quando havia maior presença da população no local. Durante a pesquisa, as pessoas que solicitaram o tombamento, moradores de Telêmaco e trabalhadores da Klabin foram entrevistados. Com isso, diante do envio do relatório solicitando o tombamento do cemitério para a Secretaria de Cultura e, assim, para o Ministério Público de Telêmaco Borba, foi decidido o tombamento do cemitério e a manutenção dele pela Klabin. 

A preservação do cemitério tem fundamento, de acordo com Leonel, por algumas especificidades. Além de antigo, o local é simbólico para a região, pois muitos trabalhadores e imigrantes foram sepultados. “Ele é sui generis, muito diferente de tudo que já vi. É cercado por mato, tem muitas árvores, túmulos antigos e de chão. Ele é um pouco soturno, com presença de bichos, muito vento. Tem um jeito diferente dos outros que vemos por aí”, comenta Leonel. 

“O cemitério de Harmonia é peculiar, pois antecede a cidade de Telêmaco Borba”, diz a geógrafa Ingrid Ligoski. Ela explica ter realizado a pesquisa para Trabalho de Conclusão de Curso de Geografia, com enfoque na arquitetura do cemitério como patrimônio. “Não é um cemitério que possui granito ou mármore. É peculiar porque é composto por pedra e cal, com a fundição das cruzes de metal, e tem alguns túmulos interessantes”, diz Ingrid. 

A profissional exemplifica o túmulo do chapéu de bruxa, nomeado popularmente por ter a aparência desse objeto do imaginário social. Ela acrescenta que o fato de existirem muitos túmulos infantis também o torna peculiar. A peculiaridade do cemitério, porém, não é relatada pelos profissionais como assustadora. Ingrid explica que, como se localiza no meio da mata, transmite tranquilidade. “A gente sente que ali é um lugar sagrado”, descreve a geógrafa. 

Por meio da pesquisa e do registro das declarações dos moradores, o relatório conclui que, diante da “história de Telêmaco e da própria Klabin, ele deveria ser preservado como patrimônio cultural do Estado”, conta Leonel. Até hoje, o cemitério se localiza dentro do território das Indústrias Klabin. Ingrid finaliza que a empresa não pode mover os restos mortais e deve garantir a manutenção do local, assim como monitorar as visitas e a segurança do cemitério. 

Estudos cemiteriais 

“A forma que uma comunidade escolhe enterrar seus mortos diz muito sobre a cultura, religião, traços sociais, hierarquias sociais, formas de poder. O cemitério é uma reprodução em escala menor das diferenças e da heterogeneidade da sociedade e da cidade”, explica o geógrafo Brendo Francis. Ele descreve que a importância dos cemitérios enquanto patrimônio cultural está relacionada à memória das pessoas que faleceram, e a construção de uma memória social e coletiva. “O cemitério é o contato direto com nossos antepassados e é ao mesmo tempo a construção da nossa memória social. Túmulos com grandes esculturas, grandes referências, mausoléus. Tudo isso é a forma como os vivos escolhem falar sobre os mortos”, destaca Brendo. 

Ingrid também destaca o valor dos estudos cemiteriais, diante do simbolismo dos cemitérios a partir do que ele reflete de uma sociedade, sendo, assim, um rico campo de estudo. “A partir do cemitério a gente entende a cidade. O cemitério é organizado igual a cidade: tem a parte central, com os melhores túmulos, melhores materiais utilizados, pessoas e famílias renomadas na cidade. Há também as periferias, com túmulos mais afastados e com menos destaque. Temos essa organização do cemitério como organização urbana”, descreve a geógrafa. 

O valor desses locais está presente também no que desperta a nível sentimental numa comunidade. Ela exemplifica os túmulos cultuados por uma sociedade, em que pessoas levam flores e cuidam. É tanto um patrimônio cultural material, porque você vê a lápide, por meio dela é possível conhecer a pessoa. E também tem valor imaterial, por despertar sentimentos a visitantes, não apenas visitantes de familiares sepultados”, explica Ingrid. 

A geógrafa fala do cemitério pontagrossense São José como um exemplo do reflexo do município numa “cidade dos mortos”. Outro cemitério a ser preservado diante do valor multidisciplinar, da perspectiva social, histórica, geográfica e arquitetônica, é o cemitério do Cerradinho, no Distrito de Itaiacoca. Há um ano, em julho de 2022, vereador de Ponta Grossa solicitou o tombamento do patrimônio, mas a ação não foi concluída. 

Texto: Cassiana Tozati | Fotos: Brendo Francis